“O importante não é aquilo que fazem com a gente; o importante é aquilo que a gente faz com aquilo que fizeram com a gente!” (Jean-Paul Sartre 1905-1980)
Em momentos como os atuais de crise sanitária grave e econômica complexa, rara e global – assistimos a choques simultâneos e interativos de oferta, demanda e liquidez – que exigem ao máximo a capacidade de liderança e resiliência de todos nós, cabe refletir no silêncio do nosso entediante isolamento físico e conversas remotas com amigos e clientes, um pouco do que podemos esperar da fase pós-crise.
Todos nós procurarmos uma situação melhor perante um desconforto, seja uma crise, uma restrição, enfim, substituir para melhor a realidade fática de nossa condição humana. Agimos para aliviar ou resolver a situação de desconforto. Agir é comportamento propositado e, em termos científicos, deve ser ação consciente e racional.
Os neandertais já usavam um tipo de cola para criar ferramentas há 40 mil anos, de acordo com estudo realizado por uma equipe de especialistas que pesquisa o assunto no centro da Itália1. Os testes mostraram que os itens de pedra foram revestidos com a resina de pinheiros locais, e, em alguns casos, o material foi misturado com cera de abelha. As cavernas eram o lar de neandertais que viveram na Europa durante o período do Paleolítico Médio, milhares de anos antes do Homo Sapiens pisar no continente. Dúvidas sobre a capacidade de nossos “primos” com genes comuns aos nossos inovarem e agir por meio do empregado racional dos fatores de produção? É da nossa natureza resolver e gerenciar problemas.
Ocorre que nem sempre nosso comportamento propositado é racional ou consciente. As massas se comportam motivadas por outros fatores instintivos, emocionais e subjetivos. Juntam-se aos atributos anteriores, o medo e a prudência. Exemplo não faltam: Enquanto a “Peste Negra” se espalhava pela Europa em meados do século 14, aniquilando quase metade da população naquela altura, as pessoas com praticamente nenhum conhecimento científico procuravam uma explicação qualquer para a doença, culminando em ações como o “Massacre de Estraburgo”2.
Em meio ao nosso drama sanitário e econômico, assistindo alguns pseudo-especialistas em “vírus e bactérias”, os verdadeiros líderes e a elite intelectual de nosso país não deveriam se afastar da responsabilidade de seus papéis, mas contribuir com base em experiência, fatos e ciência não somente para a solução da crise atual, mas nos prepararmos para a retomada e a próxima crise (sim, ela virá, como estava prevista esta e virão outras a seguir. Por isto, não é um“cisne negro”, mas um evento de gerenciamento de risco que governos e empresas poderiam ter administrado melhor).
Tudo isto nos conduzirá, por tempo indefinido, a nos afastar – parcialmente - da relação física desnecessária, fomentando o e-commerce, micrologística, entretenimento remoto, educação à distância, ginástica em casa, entre outras atividades. O mundo será mais digital do que já é. As empresas com cadeias de fornecimento internacionais farão revisões estratégicas da sua dependência da China e outras fontes de “sourcing” alterando fluxos de produção e de capital que os financiam (oportunidade para nosso país!). Haverá aceleração dos conflitos devido ao deslocamento dos poderes geopolíticos. Instituições financeiras, seguradoras e investidores reavaliarão o risco de suas operações em face da nova realidade. A ciência, em particular as ligadas à ciência da vida, ganhará novo impulso (exemplos: telemedicina e nutrição e saúde) e credibilidade. A informação preditiva será cada vez mais importante para a tomada de decisão e capacidade de negociação. Embora todos estes e outros indutores de mudança do comportamento do consumidor, do uso dos fatores de produção, do fluxo de capital e riscos correlatos, exigirão alterações de estratégias, modelos de negócio e governança corporativa adaptados e eficientes e serão impulsionados, para além do que já estava em curso. A gestão de risco (“risk management”) terá novos argumentos para ser considerada nos negócios e no ambiente governamental.
Contudo, atividades tradicionais como geração e energia e distribuição, mineração, celulose e construção civil, por exemplo, ainda que pressionados por questões ambientais devem evoluir gradativamente em relação à absorção de mudanças.
Infelizmente, muitos empreendimentos não resistirão. É a lei da seleção natural nos negócios. Seja por liderança inadequada (sempre uma fonte do sucesso ou dos maiores males nos negócios), seja por razões financeiras ou estratégicas. Algumas passarão pelos “mares de tormenta”, outras sucumbirão. O mito heróico das start ups enfrentará ainda mais a dura realidade do mundo dos negócios.
Sobre o papel do Estado e os efeitos pós-crise, conjugados com a mudança de panorama das contas públicas e endividamento decorrentes das medidas já tomadas e a serem tomadas, mais do que nunca precisaremos das melhores lideranças que nossa sociedade possa produzir. Gostaria de voltar a este tema em outro artigo, pois aqui reside um dos maiores dilemas da atualidade: O papel do Estado e como a retomada deveria ocorrer em face de um déficit público e endividamento maior do que esperado anteriormente.
Nós, brasileiros habituados a crises consecutivas e de todo tipo, sempre saberemos fazer deste “limão, uma limonada”. Devemos agir buscando soluções e alternativas, algumas serão incrivelmente eficazes, outras muito difíceis. Temos resiliência já provada historicamente. Resta, nesta sumaríssima reflexão, desejar a todos nós que nossas ações sejam sempre inspiradas no propósito de bons valores e espírito de solidariedade e cooperação humana, aliás um dos fenômenos sociais mais básicos de qualquer sociedade e tão necessária neste momento.
Vlamir Ramos - vlamir.ramos@vr9.com.br
Sócio – Diretor da VR9 Consultoria (www.vr9.com.br) com foco em realização de M&A, Real Estate e Reestruturação de Negócios. Economista (MsC) e Advogado. Executivo “C-Level” com mais de 30 anos realizando negócios no Brasil e no exterior.
1 Degano I, Soriano S, Villa P, Pollarolo L, Lucejko JJ, Jacobs Z, et al. (2019) Hafting of Middle Paleolithic tools in Latium (central Italy): New data from Fossellone and Sant’Agostino caves. PLoS ONE 14(6): e0213473. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0213473
2 O massacre de Estrasburgo ocorreu em 14 de fevereiro de 1349, quando várias centenas de judeus foram publicamente queimados até a morte, e o restante deles expulso da cidade como parte das perseguições da Peste Negra.